quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

QUEM VÊ CARAS NÃO VÊ… MAS PODE VER!

IGREJA VIVA - Edições 2015 - Dar, Escutar

1. Histórias de insolvências pessoais: 
Deixar de acreditar no amanhã. 
Convencer-me de que a vida não tem conserto ou que este depende só da mudança de outros.
Não me envolver nem amar para não sofrer. 
Querer esquecer o dia de ontem. 
Colocar adesivos em feridas infectadas. 
Não ter tempo para quem gosto e para o que gosto. 
Entregar o meu “ouro” a quem faz dele comércio. 
Abster-me de participar na causa pública. 
Esquecer-me do sabor da comida caseira. 
Negligenciar a saúde mental. 
Penhorar o dia seguinte com promessas falsas. 
Adormecer sem fazer o exame de consciência. 
Mentir ou mentir-me. 
Acordar sem objectivos. 
Correr só para chegar à meta. 
Depender de comunicações e de relações imóveis. 
Desconfiar, por princípio. 
Rezar por magia. 
Anular-me nas relações. 
Desaprender a estar calado ou fugir ao silêncio. 
Não oferecer para poupar. 
Partir sem valorizar a sombra. 
Trocar o sim pelo não, o não pelo sim e os dois pelo talvez. 
Pedir emprestado e não devolver. 
Mascarar-me fora do carnaval. 
Não olhar nos olhos. 
Não admitir sentimentos fortes. 
Justificar-me com bodes expiatórios. 
Omitir aquele beijo. 
Esquecer o humor comigo próprio. 
Cegar-me por uma qualquer emoção. 
Matar por não poder ver sofrer. 
Não pedir ajuda convencendo-me que nunca precisaria. 
Despedir-me sem justa causa. 
Deixar de desejar e de sentir prazer. 
Abrir uma porta sem bater. 
Bater com a porta, simplesmente prometendo não voltar.
Sair por não suportar ficar. 
Dividir para reinar. 
Confundir entrega com esvaziamento. 
Não perdoar nem perdoar-me. 
Travestir o perdão por esquecimento. 
Adiar palavras na hora “h” com flores e elogios póstumos. 
Dispensar-me do canto, da poesia e do contacto com a natureza. 
Esquecer-me da gratidão. 
Supor que sabem o que sinto. 
Ver só caras, sem ver corações.

2. “Escuta, por favor, aquilo que não digo”. É fácil contrabandear a minha vida no seu propósito original. É demasiado fácil cair na armadilha do multifuncionalismo diabólico, no activismo frenético e no social/religiosamente correcto. Difícil é, no entanto, suportar o preço a pagar, sobretudo no espaço privado, na solidão, minha e dos outros: medos, remorsos, vozes, ansiedades, mentiras… em circuito fechado. Por isso, mais dia menos dia, é manifesto o curto circuito. Basta olharmos para nós próprios ou para aqueles que nos rodeiam para decifrarmos o pedido escondido: escuta o que não digo! Ou que digo só por meias palavras; o que pretendo dizer pelo meu olhar distante e furtivo, pelas minhas mãos cruzadas, pelo meu passo empurrado, pelos meus olhos fundos, pela amargura com que falo… Só um verdadeiro companheiro de viagem pode desvelar esse pedido. Só me desarmarei diante de quem me acolha sem julgar e, porventura, se essa pessoa insistir em ficar, em olhar-me, em dar-me tempo.

3. Escutar activamente é uma experiência absolutamente única, libertadora e terapêutica e, sobretudo, um modo de ser, estar e fazer que se escolhe. Não é por isso uma atitude inscrita na “natureza” mas um esforço diário. Sucintamente poderíamos sequenciar deste modo a escuta activa: pressupõe, em primeiro lugar, que esteja somente num lugar único; que tudo em mim esteja naquele lugar, com aquela pessoa e com disposição para a amar (que não significa obrigatoriamente concordar com o que me diz). Se não tenho, de momento, o tempo e o lugar necessários, lanço mão da agenda para os providenciarmos sem adiar “para outro dia”.
Em segundo lugar, é necessário acolher bem: oferecer um espaço livre e, sobretudo, um coração liberto: suspender juízos moralizantes, diálogos interiores ansiosos (cedendo à tentação de encontrar respostas preconcebidas e/ou paternalistas) e combate de argumentos.
Em terceiro, é imperioso prestar atenção a quem fala, àquela pessoa única, ao que (não) diz e ao modo como o diz, sem ceder à curiosidade ou à interpretação de investigador e sem recorrer às minhas experiências pessoais. 
Em quarto lugar, manifestar compreensão ao que me é dito através de palavras, sons ou gestos e intercalando pequenos resumos para me certificar de que estamos sintonizados na comunicação. 
Em quinto lugar, atender à importância que essa experiência teve para essa pessoa, “calçando os seus sapatos”, rejeitando contudo a fusão emocional. 
Em sexto lugar, identificar os recursos, interiores e exteriores, que a pessoa tem disponíveis para enfrentar a situação que vive. 
Por último, e não menos importante, garantir a certeza da confidencialidade da informação recebida e a disponibilidade para encontros posteriores.

4. Quem vê caras não vê corações; mas pode ver. Essa é a raiz da experiência da proximidade; essa é a profecia cristã no interior da cultura actual; essa é a arma de construção maciça ao dispor de todos. Escuta, por favor, aquilo que não digo.

Padre Jorge Vilaça,
Coordenador da Pastoral da Saúde

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